O julgamento entre Hórus e Seth aconteceu da seguinte maneira: os dois deuses compareceram perante Rá-Horakhti, o senhor do universo, para apresentar as suas pretensões. Hórus ainda era um menino bem pequeno. Em primeiro lugar falou Shu, filho de Rá, dizendo o seguinte ao grande deus: «A justiça deve triunfar. Manda que o trono seja dado a Hórus.» Toth deu também o seu apoio, dizendo à assembleia dos nove deuses da Enéade: «E um direito que é um milhão de vezes certo.» E Isis, mãe de Hórus, também se manifestou naturalmente em favor do filho. A mesma opinião foi depois declarada pela assembleia dos nove deuses da Enéade. Mas Rá-Horakhti não estava convencido.
Nessa altura, Seth tomou a palavra: «Seja Hórus mandado comigo para que eu mostre como posso vencê-lo.»
Tothh contestou essa sugestão, dizendo que o trono de Osíris dificilmente poderia ser dado a seu irmão Seth enquanto o filho de Osíris ainda vivesse.
Diante dessa manifestação em favor de Hórus, o grande Rá-Horakhti ficou furioso, pois ele queria que Seth sucedesse a Osíris como rei.
«Que podemos então fazer? », perguntou Onúris, um dos partidários de Hórus.
Disse então o deus do Sol: «Vamos chamar Banebdjedet, o grande deus bode de Alendés, para decidir entre os direitos dos dois contendores.» Quando Banebdjedet veio, aconselhou que se escrevesse à deusa Neit, mãe de Rá, que ela saberia o que se devia fazer: «Não se pode fazer coisa algum a na ignorância», disse ele.
A assembleia dos deuses viu a sensatez desse conselho e chamou Toth, o escriba divino, para que escrevesse uma carta a Neit. Assim, Toth escreveu uma carta, cuidadosamente redigida em linguagem formal, em nome de Rá-Horakhti. A importante carta dizia o seguinte: «Estou com o meu espírito muito confuso e passo as noites acordado sem ter qualquer esperança de sono, pensando no problema do sucessor de Osíris. Todos os dias me aconselho com as Duas Terras, tentando resolver a questão. Que devemos fazer com esses dois homens que vêm defendendo os seus direitos perante o conselho divino há já oitenta anos? Ninguém sabe como se deve julgar entre eles. Por favor, responde, dizendo o que devemos fazer.»
Pelo mesmo mensageiro, a deusa Neit respondeu, dizendo que o trono devia ser dado a Hórus. «Deixai de cometer os atos perversos que estão inteiramente deslocados nessas circunstâncias. Se assim não fizerdes, ficarei extremamente zangada e o céu desabará.»
Neit propôs então que se aproximassem formalmente de Rá-Horakhti e sugerissem que Seth fosse compensado pela perda do trono com a elevação dos seus bens para o dobro e com o recebimento como prêmio de Anat e Astarté, duas belas deusas estrangeiras que eram filhas de Rá. «Colocai Hórus no trono de Osíris», dizia ela.
Quando a carta foi lida, os nove deuses da Enéade manifestaram a sua aprovação do julgamento. Mas Rá-Horakhti ficou furioso e zombou de Hórus, dizendo que ele era muito fraco para ocupar o trono do pai: «Teu corpo é fraco e a posição real é muito pesada para ti, moço inexperiente, que ainda tens um gosto mau na boca.»
Esse ataque zangou os outros deuses, e um deles, chamado Babai, começou a insultar o senhor do universo. «O teu santuário é desprezado!», exclamou, querendo dizer com isso que ninguém lhe dava mais qualquer atenção.
Rá-Horakhti ficou profundamente magoado com a afronta e atirou-se ao chão, cheio de raiva, enquanto os outros deuses se voltavam contra Babai e o censuravam por ele ter sido tão rude: «Não podes continuar aqui. Cometeste um verdadeiro crime dizendo isso a Rá.»
Em vista disso, Babai teve de retirar-se, e Rá foi para o jardim, a fim de pensar na afronta que sofrera. Os outros deuses recolheram-se às suas tendas, a fim de esperar que os ânimos se acalmassem.
No fim, foi Hathor quem salvou a situação. Era uma bela deusa e conhecia as fraquezas do seu pai. Por isso, foi para o jardim, tirou as roupas e exibiu os seus encantos diante dele. Rá-Horakhti riu muito com isso e recuperou o seu bom humor. Saindo do jardim, convocou mais uma vez o conselho dos deuses e ordenou a Hórus e Seth que defendessem pessoalmente os seus casos.
Foi Seth quem falou em primeiro lugar, dizendo: «Sou Seth, o mais antigo na assembleia dos nove deuses. Eu mato todos os dias os inimigos de Rá e nenhum outro deus pode fazer isso. Mereço o trono de Osíris.»
Alguns dos deuses exclamaram: «Seth tem razão!» Mas outros deuses defenderam Hórus, e todos começaram a discutir uns com os outros.
Então, disseram juntos Onúris e Toth: «É completamente intolerável que tão alto cargo seja dado a um irmão por parte da mãe, quando um filho do corpo do anterior ocupante do cargo ainda está vivo.»
Uma opinião contrária foi sustentada por Banebdjedet, o grande deus bode de Mendés, que não podia aceitar que um cargo tão importante fosse ocupado por um rapaz, enquanto Seth, o irmão mais velho, ainda estava vivo. Esse ponto de vista foi repelido aos gritos pelos nove deuses, que o julgavam pouco digno de ser emitido por um deus tão importante.
Hórus falou então, dizendo: «É completamente errado que eu seja enganado perante a assembleia dos nove deuses e que o trono de meu pai me seja tirado.»
A atitude equívoca dos nove deuses encheu Isis de cólera em nome de Hórus e ela fez um poderoso juramento de que obteria justiça para ele. Os nove deuses tentaram acalmá-la com promessas de que a justiça caberia ao pretendente que tivesse razão.
Seth sentiu-se, porém, muito ofendido com a intervenção de Isis e ameaçou de violência o tribunal: «Tomarei o meu pesado cajado e matarei a todos, um por dia, até que todos estejam mortos.»
Seth jurou ainda que não participaria mais nos debates enquanto Isis estivesse presente no tribunal. Rá disse então aos presentes: «Iremos para a ilha que está no meio da água. Anti, o barqueiro divino, receberá ordem para negar passagem a Isis ou a alguém como ela.»
Depois de os deuses terem passado para a ilha lá se sentaram para comer. Anti, o barqueiro, voltou para o outro lado da água. Pouco depois, Isis aproximou-se, disfarçada numa velha, caminhando encurvada e trazendo na mão um anel de ouro.
«Queres levar-me para a ilha? », perguntou ela a Anti. «Trouxe esta pa nela de trigo para o rapaz que está há cinco dias na ilha tratando do gado e ainda não comeu.»
Anti respondeu: «Recebi ordem de não transportar qualquer mulher.» Perguntou a deusa: «Essa ordem foi por causa de Isis?» Mas Anti, em vez de responder à pergunta, quis saber da velha o que ela estava disposta a dar-lhe. A princípio, Isis ofereceu-lhe um pão, mas Anti rejeitou-o desdenhosamente: «Oue valor tem um pão para mim? Achas então que vou transportar-te pela água até à ilha quando recebi ordens expressas de não levar mulher alguma? »
Isis foi então obrigada a oferecer a Anti o anel de ouro que tinha no dedo. Com esse grande incentivo, conseguiu vencer os escrúpulos do barqueiro e ele concordou em atravessá-la.
Quando chegaram à ilha, Isis agradeceu a ajuda de Anti e, deixando a barca, encaminhou-se por entre as árvores até onde se encontravam os nove deuses. Em breve avistou-os a comer num lugar frondoso em companhia do senhor do universo.
Seth olhou para Isis quando esta se aproximava por entre as árvores. Mas Isis, temendo ser reconhecida e querendo ao mesmo tempo enganá-lo, transformou-se numa mulher muito bela, como não poderia encontrar-se igual em qualquer ponto da terra.
Logo que a viu, Seth foi tomado de grande desejo e deixou a companhia dos outros deuses, a fim de persegui-la. Então Seth, aproximando-se de Isis, que não fora vista pelos outros deuses, colocou-se atrás de uma árvore e disse: «Aqui estou ao teu lado, bela mulher! »
Isis respondeu timidamente: «Não me faças mal, nobre senhor. Estou em grande aflição. Eu era casada com um vaqueiro e tive um filho dele. Mas quando o menino ainda era bem moço, o pai morreu e, como era de direito, ele tomou posse do rebanho do pai. Mas nesse momento apareceu um estranho que, depois de instalar-se calmamente no estábulo, disse a meu filho que lhe bateria, pô-lo-ia para fora de casa e tomaria conta do rebanho. E essa agora a situação. Meu filho está deserdado. Queres tu agir em favor dele?»
Quando Seth ouviu essa triste estória, foi tomado pela indignação e exclamou: «Mas pode o gado passar às mãos de um estranho enquanto o filho do legítimo dono ainda está vivo?»
Logo que ele proferiu essas palavras, Isis voou para uma árvore como um falcão e gritou para Seth: «Com o teu próprio bom senso te julgaste!» Seth compreendeu então que fora enganado. Correu para onde estava Rá e contou-lhe o que havia acontecido, culpando Anti pela situação. Anti foi então chamado e as solas de seus pés foram arrancadas, declarando que daquele dia em diante nunca mais tocaria em ouro. Enquanto isso, a assembleia da Enéade atravessou para a extremidade oriental da terra e aí foi recebida uma mensagem de Rá, o grande deus, dando instruções para que Hórus fosse instalado no lugar de Osíris. Quando se preparavam para cumprir essas instruções, Seth objetou energicamente e disse que ele e Hórus lutariam juntos dentro da água.
Rá-Horakhti concordou, e então Seth disse a Hórus: «Vamos transformar-nos em dois hipopótamos e lutar dentro da água. Quem sobreviver três meses, receberá o trono.»
Quando os dois estavam na água, Isis não pôde deixar de interferir de novo. Preparou então um arpão preso a uma corda e lançou-o para a água. Atingiu primeiro Hórus e depois Seth. Mas deixou de explorar a sua vantagem e teve pena de Seth quando este lembrou o parentesco existente entre ele e Isis.
Quando Hórus viu Isis livrar Seth do arpão, perdeu a calma, saiu da água com o seu machado de trinta quilos e cortou-lhe a cabeça. Guardou a cabeça de Isis no peito e tomou o caminho das montanhas.
Então Isis transformou-se numa estátua de pedra mas sem cabeça. Quando Rá-Horakhti a viu, perguntou a Toth: «Quem é essa mulher sem cabeça que aparece aqui? »
Quando Toth explicou que era Isis e que seu filho Hórus lhe havia cortado a cabeça, o grande deus ficou fora de si, de tanta raiva, e chamou os nove deuses da Enéade para que iniciassem imediatamente uma perseguição a Hórus, dizendo: «Vamos procurá-lo e puni-lo severamente pelo que fez.»
Os nove deuses partiram no mesmo instante para seguir a pista de Hórus, que, entretanto, se deitara para descansar sob uma árvore num bosque. Foi Seth quem primeiro o encontrou. Então, sem dar qualquer hipótese a Hórus, saltou logo sobre ele, lançou-o de costas e arrancou-lhe os olhos, enterrando-os no chão. Os olhos criaram raízes, transformaram-se em bolbos e deles nasceram duas flores-de-lótus. Quando voltou para junto de Rá-Horakhti, Seth declarou que não havia encontrado Hórus.
Hórus, que fora deixado no deserto, cego e em pranto, foi encontrado por Hathor. A deusa tirou então leite de uma gazela e ungiu com ele as órbitas de Hórus. Levou então Hórus de volta ao tribunal e contou aos deuses o que acontecera.
«Chamai já Hórus e Seth a julgamento aqui», disseram os nove deuses.
Rá-Horakhti proferiu então o seu divino julgamento sobre eles: «Prestai atenção ao que eu digo. Ide e vivei juntos. Vivei em paz e deixai de brigar durante todo o tempo.»
Seth convidou então Hórus para ir à sua casa, e o convite foi aceito. Quando a noite chegou, uma cama foi preparada e os dois deuses dormiram juntos. Durante a noite Seth tentou violar Hórus mas este estava preparado, pegou o sémen de Seth e correu para Isis, dizendo: «Vê o que Seth fez comigo!»
Isis ficou chocada e tirou imediatamente a faca, cortou a mão de Hórus e atirou-a para a água, substituindo-a por outra. Tomou então uma porção do sémen de Hórus e levou-a para o jardim de Seth. Procurando o seu jardineiro, perguntou-lhe quais as plantas que ele costumava comer.
«De todas as plantas que crescem aqui. Seth só come alface», disse o jardineiro.
Quando o jardineiro lhe mostrou quais eram as plantas, Isis espalhou nelas o sémen. Pouco depois, Seth foi ao jardim, como fazia todos os dias, e comeu a alface, tal como dissera o homem. E Seth engoliu sem saber o sémen de Hórus.
Pouco tempo depois, Seth sugeriu a Hórus que voltassem ao tribunal para defender a causa. Logo que os dois chegaram à presença dos deuses, Seth começou a vangloriar-se das suas altas proezas e ganhou uma opinião favorável dos nove deuses. Mas Hórus riu alto e pediu aos deuses que chamassem os seus respectivos sémens para ver de onde os mesmos responderiam.
Toth pôs a mão sobre Hórus e invocou o sémen de Seth; este respondeu dos pântanos. Pôs então a mão em Seth e invocou o sémen de Hórus, o qual respondeu de dentro de Seth.
Toth disse: «Sai para a testa de Seth.» O sémen apareceu ali como um sol dourado. Seth ficou furioso e quis atirá-lo fora, mas Toth tomou-o e colocou-o na própria cabeça.
Em seguida Seth desafiou Hórus para um combate em cima de barcos. Primeiro, Hórus fez um barco de cedro e revestiu-o com gesso. A aparência do barco iludiu Seth que pensou que ele fosse feito de pedra e fez para si um barco de pedra. Quando os dois barcos foram lançados o de Seth afundou-se imediatamente.
Seth transformou-se então em hipopótamo e tentou virar o barco de Hórus. Este apressou-se em apontar um arpão para Seth, mas os nove deuses refrearam o seu gesto, dizendo: «Não o lances nele!»
Hórus guardou o arpão no seu barco e então foi até Sais para pedir à deusa Neit que interviesse mais uma vez naquela disputa que já durava há oitenta anos.
«Peço que haja afinal um julgamento entre mim e Seth», disse Hórus. «Há oitenta anos que ando por aquele tribunal, e ninguém sabe, mais do que no primeiro dia, como decidir entre nós. Apesar disso, ele nunca foi corretamente julgado, ao passo que eu muitas vezes tenho levado vantagem sobre ele. Seth nunca dá qualquer atenção ao que lhe dizem os nove deuses.»
Quando os nove deuses da Enéade ouviram a queixa de Hórus, concordaram com o que ele dizia. Toth disse então a Rá-Horakhti: «Porque não se escreve a Osíris, perguntando qual é a sua opinião?»
Shu disse então que Toth tinha toda a razão. Rá-Horakhti deu instruções a Toth para escrever a Osíris, a fim de saber o que ele aconselhava.
Escreveu então Toth a Osíris: «Diz-nos o que devemos fazer com Hórus e Seth. Não queremos agir com ignorância.»
A carta levou muitos dias para chegar às mãos de Osíris, o rei. Quando ele a leu ficou aborrecido e dirigiu sem demora uma resposta a Rá-Horakhti: é que Hórus tem de ser lesado? Não sou eu quem te faz forte? Não sou eu quem faz a cevada e o trigo que alimentam os deuses e todas as criaturas vivas depois dos deuses? Há algum deus ou deusa capaz de fazer o mesmo?»
Rá-Horakhti recebeu a carta quando estava em companhia dos nove deuses. Depois que ela lhe foi lida, ele ditou imediatamente uma resposta: «E se tu nunca tivesses existido? Mesmo assim, a comida estaria aqui sem ti.»
Em resposta, Osíris escreveu: «Tudo o que fizeste é bom, criador dos nove deuses. Mas deixaste que a justiça fosse para o mundo inferior. Tenho aqui muitos emissários de cara selvagem a quem posso mandar buscar os corações dos que erram. Que significa a minha presença aqui? Eu sou mais forte do que tu. Quando fez o céu, Ptah disse às estrelas que, todas as noites, poderiam dormir no Ocidente onde Osíris está e, depois delas, todas as outras pessoas repousarão em Osíris.»
Quando Rá-Horakhti recebeu a carta de Osíris e a fez ler, os nove deuses exclamaram: «Tudo o que diz o grande senhor da abundância é verdade.» Seth sugeriu então que todos fossem outra vez para a ilha no meio da água, a fim de resolver aquele assunto de uma vez por todas. Assim, os deuses atravessaram novamente a água e em conclave declararam Hórus vitorioso.
O grande deus ordenou então a Isis que fizesse Seth comparecer, acorrentado, perante os deuses e, quando ele apareceu, perguntou-lhe: «Porque é que não deixaste que este caso fosse resolvido contra ti e assumiste por ti mesmo o trono de Osíris? »
Seth disse então: «Nada disso, meu senhor. Que Hórus seja chamado e receba o trono de seu pai Osíris.»
Hórus foi então chamado e instalado no trono de seu pai. «Que faremos agora com Seth? », perguntou Ptah.
«Deixai-o comigo e ele poderá ficar no céu para trovejar e encher os homens de medo», respondeu Rá-Horakhti.
Em seguida, ordenou que os nove deuses da Enéade louvassem Hórus e se prostrassem diante dele. Isis deu o exemplo, e a terra toda regozijou-se ao ver Hórus, filho de Isis, colocado no trono de seu pai Osíris. E Isis clamou:
«Hórus ergueu-se como rei, vida, prosperidade e saúde! A Enéade está em festa, o céu em alegria! Enfeitam-se com grinaldas vendo Hórus, filho de Isis, erguendo-se como grande governante do Egito. Os corações da Enéade exultam, toda a terra rejubila quando eles vêem Hórus, tilho de Isis, tomando o lugar de seu pai, Osíris, senhor de Busíris.»
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